No último final de semana de março recebemos o parceiro e amigo Guilherme Castagna, da Fluxus Design Ecológico, para o Curso Reidratando a Paisagem Urbana com Água de Chuva. Caso você não conheça o trabalho da Fluxus, entra no site da empresa. Aqui.
Era um sonho antigo que conseguimos realizar: unir o conhecimento e a experiência do Gui (assim o chamamos) com a nossa própria aqui no sítio, um espaço onde água é um dos focos centrais de atuação e cuidado. E onde só contamos com a água de chuva para suprir nossas necessidades. Mais de trinta pessoas toparam estar conosco nesses dois dias e foi um encontro muito nutridor para todos. Convido todos os participantes a compartilhar suas impressões nos comentários. Uma continuidade acontecerá, aguardemos.
Há pouco mais de um mês publiquei aqui um artigo tratando do mesmo tema, mas com um enfoque um pouco diferente. Usei como metáfora “a cachoeira que não deveria estar lá” para trazer duas questões atuais, graves e interligadas em Brasília e arredores: a expansão urbana desenfreada, impermeabilizadora e, portanto, burra, nas chapadas do planalto e a drenagem desidratadora e desnutridora da paisagem que ela promove (e que só comprova a sua burrice suicida). Com o agravante de fazer isso em uma região onde, bem mais que em outras, há a imensa necessidade de estocar água no subsolo para sustentar sua crescente população nos períodos de seca. Posteriormente me deparei com uma matéria do Estadão, intitulada “Ocupação pode ter piorado crise hídrica em Brasília” que, como diz o título, traz isso como uma hipótese. Para mim, é uma obviedade. Basta olhar em volta para perceber. E constatar o quão terrível é vermos que a ocupação humana urbana vem quase que invariavelmente junto com a desidratação, a desvitalização e o empobrecimento da paisagem natural.
O curso veio justamente para nos trazer um repertório de possibilidades de ação para reverter isso. Voltemos a ele. Registro aqui o que mais me marcou pessoalmente.
Começou com a linda imagem de um feto em seu meio líquido, nos lembrando que todos viemos da água. É nela que nossos corpos se formam. Ao nascermos, somos compostos por quase 90% de água, e envelhecer é perder água, ressecar, desidratar. Vale não só para nós, como para quase todas as formas de vida. Talvez valha também, em maior escala, para todos os sistemas de suporte da vida terrestre no nosso planeta, que é azul para quem o vê do espaço justamente por causa da água dos oceanos junto com a atmosfera cheia de vapor de água.
Em seguida relembramos que a quantidade de água existente no planeta é basicamente a mesma desde sempre. Não sabemos de onde ela veio ou como se formou, essa é a verdade. Mas sabemos que a vida só é possível porque essa água toda está sempre em ciclo na Terra. A nossa vida, inclusive. Sendo esse ciclo algo fundamental para nós humanos, me parece meio evidente que deveríamos dar grande importância a ele, tentar compreender seus mecanismos e nos inserir nele de forma cooperativa. Isso, claro, partindo do pressuposto de que é do nosso interesse permanecer vivos enquanto espécie neste planeta.
Uma coisa que salientamos acerca do estudo deste ciclo é que existe o ciclo global da água, mas também os ciclos regionais e até mesmo locais, como um fractal. Isso se reflete nos padrões climáticos. Outra coisa, totalmente conectada a essa, é a imensa contribuição da evapotranspiração por parte das plantas para que todos esses ciclos aconteçam. Isso nos remete à importância dos ecossistemas florestais para a manutenção das águas e portanto da nossa vida.
Nós brasileiros deveríamos ser especialmente atentos a isso em função dos agora famosos Rios Voadores criados pela floresta amazônica a partir da umidade do mar, e que, com a ajuda da barreira criada pelos Andes, nos salvam de ter um grande desertão no centro-sul do nosso país. Isso é muito bem explicado pelo professor e pesquisador do INPE Antonio Nobre, neste vídeo da FAPESP, e mais detalhado ainda no belíssimo relatório “Futuro Climático da Amazônia” que, embora fale da Amazônia, diz respeito a todos nós. Sugiro baixar, ler e guardar.
Ainda em relação ao ciclo da água, na outra ponta das plantas, emergiu também a importância do seu papel na infiltração da água nos solos. As raízes fazem isso, não só porque criam espaços no subsolo, como também geram condições bio-físico-químicas para a retenção de água de várias maneiras, inclusive por meio de coloides associados a elas. E a matéria orgânica que cobre e protege o solo cria também uma espécie de esponja sobre ele, ajudando a mantê-lo vivo e são. Afinal, “a retenção de água é a essência de todo processo de regeneração”.
Um dos pontos altos do início do primeiro dia foi uma dinâmica inspiradora e reveladora. Viramos água e seguimos o caminho dela pela paisagem ao redor e dentro do sítio.
Vieram índices, contas, cálculos. Precipitação, tempo de retorno, coeficiente de infiltração. Afinal, quando falamos de água de chuva, de quanta água estamos falando? A reposta é: de 1 litro para cada milímetro de chuva que cai. Assim, em uma área de 1000 metros quadrados, uma chuva de 10 milímetros significa 10.000 litros de água. Não é pouco. Mas quanto a superfície em que ela cai consegue infiltrar? Vai depender do tal coeficiente de infiltração. Vimos que uma área asfaltada infiltra 5% da água que cai sobre ela, e 95% escorrem superficialmente, ao passo que uma floresta infiltra 95% da chuva que recebe. O oposto. Pudemos entender de que modo os nossos sistemas viários acabam por funcionar com agentes desidratadores da paisagem, algo especialmente grave em Brasília.
A partir daí uma bela expressão começou a ecoar em todos nós e nos acompanhou por todo fim de semana: acolher a água, temos que acolher a água. Bela porque acolher é sempre um ato de cuidado, generosidade e empatia, e também porque a água o merece, sendo esse elemento precioso e fundamental. A isso se seguiu um conjunto de formas de fazer esse acolhimento e com isso reidratar e regenerar a paisagem.
A permacultura engloba várias dessas técnica. Vimos também os limites desse acolhimento para diferentes tipos de solo. Aprendemos como se faz um teste de infiltração no solo.
Falamos sobre a leitura da paisagem para entender os padrões de drenagem e acúmulo de água. E como devemos transpor isso para tudo o que se refere à nossa ocupação territorial. Estudamos e apresentamos os sistemas de acolhimento de água de chuva no Sítio Nós na Teia, e ficamos muito felizes de vê-los validados. Tanques de captação, valas de infiltração, açudes na beira da estrada de acesso. Todos tentando botar em prática um dos mantras do curso: “o melhor lugar para se segurar a água de chuva é onde ela cai”. Reitero a promessa de descrevê-los melhor em outra postagem.
Validamos também os nossos ambiciosos planos futuros de desviar a água que corre na estrada acima do sítio para dentro dele. Em uma chuva bem forte, isso deve significar algo como 1 milhão de litros entrando na propriedade. Estamos preparando ela para isso, conscientes do risco associado, mas sabendo que a estratégia de lidar com essa água deve começar no ponto mais alto da paisagem.
Aprendemos que podemos chamar esse conjunto de abordagens como estratégias REI: Reduzir a velocidade de escoamento; Espalhar sobre a superfície; Infiltrar. Que também podem ser traduzidas de forma bem humorada pelo triplo S caipira: Sigura, Spaia e Somi.
De tudo isso veio o entendimento de que drenagem de águas pluviais é apenas uma das muitas estratégias dentro da macroestratégia de manejo dessas águas que o céu generosamente nos manda, seja em um terreno urbano individual, seja em uma cidade inteira. Isso pode querer dizer: drena daqui, que queremos um subsolo seco (por exemplo), e vamos acolher e infiltrar mais adiante, quanto mais perto melhor. Espacialmente falando, isso pode se configurar como uma sequência de convexidades e concavidades na paisagem, com os ecossistemas a eles associados. Tentamos fazer exatamente isso no Sítio Nós na Teia, tendo o dificultador de sua topogrofia básica ser uma encosta convexa voltada obliquamente para o poente.
Se conseguirmos levar essa lógica para o manejo de água para as cidades, podemos começar a redesenhá-las como espaços sensíveis à água, como propõem alguns colegas urbanistas sensatos. Para chegar a isso, contudo, temos que mudar os nossos conceitos culturais em relação à paisagem urbana, e mesmo a forma idealizada ou distante com que nos relacionamos com os sistemas naturais.
Por fim, conseguimos realizar uma intervenção urbana em nossa região. Com o apoio generoso do viveiro de Romero Melo, que nos fez uma linda doação de mudas, pudemos começar a transformar em um jardim de chuva uma das bacias de retenção existentes no canteiro lateral da DF-001, ao lado do Condomínio Solar de Brasília, Quadra 2. Assim como no dia anterior, fomos perfeitamente sincronizados com a chuva, que começou a cair no exato momento em que terminávamos o plantio e íamos embora. Pode parecer uma ação pequena, mas traz embutida várias mensagens importantes: que essas bacias podem ser mais eficientes, bonitas,vivas e produtivas se forem acompanhadas de um plantio intensivo e diverso; que nós cidadãos podemos e devemos intervir no espaço público para melhorá-lo, que somos parte do problema e que devemos passar a ser parte da solução, abrindo nossos terrenos, quadras, condomínios, ruas para o acolhimento e retenção da água.
Ao final, tudo isso ficou gravado em outro dos mantras do curso: “sonhar grande, começar pequeno e agir logo”. Que assim seja.
Enfim, o curso foi um bálsamo. E, como todo bálsamo, nutriu e hidratou. Em tempos sombrios como estes em que vivemos, que possamos sempre nutrir e reidratar a esperança e o propósito de proporcionar a todos viver em paisagens mais vivas e acolhedoras, numa sociedade solidária e fraterna. Sigamos na caminhada.
Xara, acredito que o curso foi muito inspirador para todos, temos um papel muito importante aqui no planalto de manter a nascente de vários grande Rios brasileiros. Lá no sítio, por exemplo, nós contribuímos para o Rio Maranhão e o Tocantins. Vc e o Gui conseguiram tocar o assunto de forma sensível e profunda, passando importantes técnicas. Obrigado pela oportunidade.
Sim, meu caro. O seu trabalho às margens da lagoa Formosa é de fundamental importância para aquela bacia. Nem tanto pela dimensão, mas pelo belo exemplo. Se ele inspirar outros, aí a bacia estará bem melhor.