Moramos no fundo de um vale, com um morro florestado em frente à casa, numa paisagem diferente da convencional de Brasília, cidade considerada “plana”. Na verdade, não estamos no Plano Piloto, a área planejada da cidade, que realmente está locado em algo como um grande platô suavemente inclinado em direção ao Lago Paranoá.
Estamos a leste do lago, numa bacia hidrográfica seguinte, a partir da qual se inicia uma sequência de vales profundos, também chamados de “dissecados”, e seus respectivos divisores de águas, cada um deles uma microbacia drenando para o vale do Rio São Bartolomeu, o maior rio do DF. Aliás, o Paranoá também drena para lá. Vão dar no rio Paraná depois de uma boa viagem e no mar depois de Buenos Aires. Sim, Bacia do Prata. Parte dela nasce por aqui, mas isso é outra história.
Esses divisores de água costumam ter os topos planos. Em alguns casos são chapadas estreitas, em outros grandes platôs. As vertentes em geral são bem íngremes, com até 120 metros de desnível até o curso d’água.
Desde a década de 80 estão sendo paulatina e implacavelmente ocupados pela expansão urbana na forma de condomínios horizontais que avançam até as suas bordas.
Daqui do nosso vale ainda verde e bonito vemos os condomínios ocupando grande parte dos horizontes ao redor. Embora sejam condomínios de classe média e alta, com infraestrutura considerada muito boa e casas tidas como “de alto padrão”, são desenhados, implantados e ocupados de forma bastante convencional, o que infelizmente equivale a dizer insustentável e destrutiva. Foi desse modo que surgiu a nossa famigerada cachoeira.
É uma cachoeira triste, intermitente, que só derrama água quando chove. Quando o faz é muita água, dá para escutar daqui, a mais de meio quilômetro de distância, mesmo com pouca chuva. Quando a chuva engrossa, o ronco fica forte, toda aquela água descendo diretamente do topo do platô até o córrego no fundo do vale, pulando os degraus. Parte se rebela e espirra para fora de suas paredes, causando alguma erosão visto que água não gosta de correr emparedada e em linha reta.
É triste porque, apesar de ter uma barreira dissipadora de energia no desemboque no córrego, o volume de água que chega nele, já em momento de cheia, é extremamente destruidor. Pelo volume e velocidade, acaba por erodir as margens do córrego.
É triste porque sedimentos e nutrientes que deveriam permanecer no solo, e até percolar nele junto com a água, são rapidamente levados para assorear e poluir o córrego.
É triste porque ela concentra a água que deveria estar correndo pelas outras grotas da mesma encosta e, ao fazer isso, priva essas grotas dessa importante água.
Mas é triste principalmente porque toda a água que corre nela não deveria estar descendo assim tão apressada para o córrego, a essa altura já transbordando em função da chuva. Ela deveria estar se espalhando e se infiltrando lentamente no platô agora ocupado por casas e ruas, ou descendo as grotas da vertente por caminhos cheios de obstáculos, depressões e curvas. Descendo, contornando, parando e se infiltrando. Para justamente alimentar o lençol freático e o córrego durante o período de seca. Sendo lançada diretamente ao rio em enxurrada, ela já está indo embora.
Isso é o mais grave. Não só ocupamos e impermeabilizamos as áreas de recarga por excelência (os platôs), como delas expulsamos com pressa a água de chuva que nos abasteceria na época da seca. É triste, burro e insustentável.
Sabe o que é ainda pior? É que essa é considerada uma boa solução de drenagem, simplesmente porque de fato drena as ruas (ou seja, expulsa as águas) e o faz sem causar erosão na encosta. Realmente, isso ela faz, mas em qualquer outro aspecto é uma solução que cria vários outros problemas, como podemos ver.
O que me traz à terrível confirmação do quanto as nossas práticas usuais de ocupação territorial vão na completa contramão do que uma sociedade saudável, madura e sustentável deveria fazer. A cachoeira que não deveria estar ali é um triste exemplo de como nossas soluções são pontuais e limitadas, não são integradas, integradores, sistêmicas e muito menos a favor da vida.
Mas o problema é ainda maior e mais profundo. O simples fato de estamos sempre ocupando mais e mais territórios, fazendo mais do mesmo, usando a mesma abordagem em relação à água, mostra o quanto PRECISAMOS nos abrir para soluções efetivamente sistêmicas a alinhadas com os sistemas naturais locais.
Isso é ainda mais visível em Brasília, cidade que está em um planalto, local de nascentes e córregos pequenos, à montante de qualquer curso d’água de porte e assentada sobre uma grande área de recarga. Seria precisamente um local onde o bom senso e a inteligência nos diriam que, para viver nele, PRECISAMOS APRENDER a aproveitar a água de chuva no período chuvoso. E não mandá-la embora.
Precisamos aprender isso. E fazer diferente!!! Não faltam conhecimentos técnicos para um manejo ecológico da agua, mas sim uma nova cultura e consciência que valorize a importância e urgência de empregá-los.
Nesse sentido, vamos postar algumas dessas soluções por aqui, aguarde.
Conto com você para fazermos diferente.
ATUALIZAÇÃO DE 7 DE MARÇO
A cachoeira ficou ainda mais triste. Ela segue desperdiçando a água que deveria estar indo para o lençol freático, mas agora está causando uma feia erosão na encosta ao fazer isso.
No dia 18 de fevereiro choveram 56 milímetros aqui em nossa área. Chuva forte. Provavelmente nesse dia, a água quebrou as paredes que a continham naquela curva no alto da cachoeira. Lembram que eu disse que água não gosta de ser emparedada? Pois é… ela se rebelou e fugiu. Estávamos viajando, por isso não sabemos com certeza. O que sabemos é que na sequência houve mais três dias de chuva, e quando voltamos a paisagem em volta dela era desoladora, com um estrago já considerável. Mais alguns dias e resolvemos registrar.
Isso traz outra questão sobre essa infraestrutura de drenagem concentradora de água em apenas um ponto de escoamento. É muita água junta, com muita força. Qualquer problema é um problemão. Olha isso se mostrando aí.
E no dia 6 de março, no meio da tarde, aconteceu uma chuva forte por aqui. Nem tanta água assim, apenas 13 milímetros. Mas pudemos registrar a tristeza e o poder destruidor que essa falha está ocasionando. Vejam a seguir, que , que tristeza.
Após sua fuga, ela causa uma erosão considerável na encosta, e um impacto muito maior no córrego lá embaixo. Ele agora, além de água em volume enorme, deve estar recebendo terra, galhos, árvores e até raízes, pelo visto. Assoreamento expresso à vista, com previsível colapso da margem do córrego, ao qual não temos acesso.
Durma-se com um barulho destes. Não registramos a situação dessa erosão após essa chuva, e enquanto escrevo, no dia 7/3, outra chuva forte está caindo. O problema vai se agravando a cada nova chuva. No limite, se nada for feito, a própria estrutura pode ser desestabilizada pela erosão. Esperamos que o condomínio responsável trate de consertar essa escadaria/cachoeira o quanto antes. Ela é ruim por seu próprio princípio e lógica, mas quebrada fica péssima.
Mais um argumento para criarmos uma infraestrutura mais alinhada com a natureza e seus sistemas. Vamos fazer isso, pessoal. Já passou da hora.
“Tweetei” este excelente trabalho; embora vc não mencione o problema dos efluentes (esgotos) domésticos, que dificilmente estariam contemplados com projetos para tratamento nestes condomínios, espero muito que haja um tratamento. Geralmente ligam às redes de escoamento das águas pluviais.
Olá, Juscelita. Grato pela resposta. É, não tratei de esgoto nesse artigo mesmo. É um problema, sem dúvida, mas eu quis focar na problemática e desidratante visão de drenagem dominante. Uma coisa de cada vez, muito embora estas problemáticas comumente estejam integradas.
Tweetei” este excelente trabalho; embora vc não mencione o problema dos efluentes (esgotos) domésticos, que dificilmente estariam contemplados com projetos para tratamento nestes condomínios, espero muito que haja um tratamento. Geralmente ligam às redes de escoamento das águas pluviais.