Tarde nublada de uma segunda-feira. Voltando do centro da cidade, passo pelo bairro afluente vizinho ao sítio, bacana até no nome: SMDB, Setor de Mansões Dom Bosco. Lá estavam eles, enfileirados na área pública. Os sacos pretos estufados de matéria orgânica, prontos para serem levados pelo serviço de limpeza urbana. Podas de cercas vivas, gramas cortadas, folhas de árvores diversas. Até algumas frutas e flores. Para muita gente, apenas lixo. Para mim, tesouro para criar solo fértil.
Chego em casa, boto a roupa velha e volto lá atrás desse material. Por incrível que pareça, é diversão para mim. Paro em frente a um condomínio, resultado da subdivisão dos lotes originais das mansões. Ainda assim, grandes lotes, algumas casas bonitas, outras feias. Todas enormes. Recolho os sacos, encho a caçamba da caminhonete.
Estou quase saindo quando vejo uns canos encostados ao pé do muro. Canos marrons, diferentes. Curioso, me aproximo para investigar. Antes mesmo de alcançá-los, reparo que são canos de esgoto e que uma rede coletora acaba de ser implantada ao longo da via, no amplo gramado que fica na frente dos condomínios. Afinal, é um bairro nobre. Não só os lotes são grandes, como há área pública de sobra, em geral bem cuidada e sempre subutilizada.
Lembro-me então da movimentação de obra de rede de esgoto que já vira pelas redondezas,
com placas de obra em algumas vias principais. Claro, é parte daquele projeto. Como não conectei as coisas antes?
Aproximo-me para dar uma olhada na obra. Cruzo com o funcionário do condomínio que está trazendo lixo para fora e puxo conversa.
“Oi, amigo. Sabe quando foi feita essa rede de esgoto aqui? ”
“Semana passada. Na verdade, acabaram de refazer o bloquete da entrada anteontem mesmo. ”
“E é bem comprida. Segue aqui e desce até a beira do lago. E para levar o esgoto de bem pouca gente, parece. Esses condomínios não têm muitas casas e as famílias não costumam ser muito grandes, né? “
“Pouca gente mesmo. E eles têm fossas muito boas, fundas, até sete metros. Demora muito pra encher, é raro. Mas aí é só chamar o caminhão limpa fossa”.
“Bom, então eles devem estar adorando a coleta de esgoto…“
“Iiiii, o pessoal aí não está gostando dessa rede não. “
“Não? E por que não? ”
“Ué, porque eles agora vão ter que pagar a conta de água em dobro. E olha que gastam muita água.”
Claro! Outra ficha caiu para mim. Uma obra cara, mais de 7 milhões de reais só para fazer a rede até a beira do lago Paranoá. Outros 7,4 milhões de reais para a estação elevatória que bombeará todo esse esgoto dali, no pé da ponte JK, para a ETE Sul, no outro lado do lago, na ponta da Asa Sul, a cerca de 9km de distância. Por que tanto investimento em uma área de tão baixa densidade? Será que é realmente para resolver um problema, ou para aumentar o fluxo da caixa da companhia de saneamento, a Caesb? Afinal, essas mansões consomem muita água, com suas grandes piscinas e gramados, duplicar a conta por conta do esgoto parece um bom negócio.
Jogando dinheiro no esgoto
Puxa, 14,4 milhões de reais. Que merda!
É muita obra, é bastante dinheiro. Para simplesmente levar embora o esgoto dessa gente, a merda diluída em água, para um tratamento distante. Além disso, o sistema vai usar essa coisa infame que é uma estação elevatória, um conjunto de bombas elétricas colocadas na beira do lago Paranoá que vai constantemente demandar energia elétrica para bombear… merda! Bombas consomem energia e costumam pifar, a energia falha, redes se quebram e vazam. Não vou sequer falar das limitações das próprias estações de tratamento, essas instalações gigantes, caras de construir e de manter e dependentes de insumos químicos e muita energia.
Perguntas antigas me voltaram. Perguntas típicas de quem trabalha com permacultura e, portanto, busca que os ciclos de água e nutrientes se fechem no local, dentro de uma visão de integração com os processos da natureza.
Por que a insistência em obras desse porte e todo o custo e risco associado a elas? Qual o sentido de juntar a merda de tanta gente em um único lugar para ser tratada? Qual será o custo por família dessa obra específica? Seria a melhor maneira de se resolver essa questão? Por que sequer se consideram alternativas mais locais e menos centralizadas?
Resolvi dar uma pesquisada para embasar melhor o argumento a favor de alternativas mais eficientes, econômicas e ecológicas.
Por não saber exatamente a extensão da rede em construção e das unidades residenciais atendidas, corri atrás da informação, sem ter sucesso. Ela deveria ser pública, mas é tratada como se fosse confidencial. Na falta de dados oficiais, resolvi estimar a área a ser atendida por essa rede.
Na primeira imagem de placa de obra está escrito que a rede se destina ao SMDB, então considerei que essa será a área prioritariamente atendida. É a área circundada em vermelho no mapa a seguir, e possui algo como 980 casas, em uma rápida contagem visual.
Por via das dúvidas, vamos considerar também a área do Lago Sul que está circundada em azul, e que conta com algo em torno de 850 casas.
A soma das duas áreas totaliza algo como 1830 casas. Seriam então 1830 famílias que passariam a ter seus esgotos coletados e bombeados para a estação de tratamento pelo custo de R$ 14,4 milhões. Na imagem abaixo vemos uma possibilidade de traçado da rede de recalque até a estação. Se não for isso, é algo parecido.
Isso dá um custo de R$ 7.800,00 por família atendida. Se considerarmos apenas a parte do SMDB com suas 980 casas, teremos então R$ 14.690,00 por família. Em benefício do sistema em implantação, vamos considerar o primeiro valor para efeitos dos nossos cálculos aqui.
Uma crítica ao modo convencional
Na permacultura sempre buscamos soluções que sejam o mais local possíveis. Isso vale para tudo o que fazemos e necessitamos, então o tratamento de qualquer água servida está incluído logo de cara. A primeira questão é sobre a natureza dessas águas servidas, o que as compõe. E aí, uma diferenciação logo se destaca, as águas servidas que contêm coliformes fecais (a própria merda) e as que não contêm. As primeiras são as águas pretas, as últimas são as águas cinzas. Embora todas sejam evidentemente sujas e necessitem de purificação, as águas cinzas (em média, 60% dos esgotos de uma residência) não são contaminantes como as águas pretas (40% do total). Isso significa que a mistura das duas redunda na contaminação de 60% do volume com coliformes fecais. Não faz sentido, mas é a norma.
O que faria sentido então seria não misturarmos as duas. As águas cinzas podem ser tratadas de formas mais simples, até mesmo com infiltração em jardins projetados para tal. E as águas pretas precisam de um tratamento mais completo, sem contato com o solo e o lençol freático.
O que as duas águas têm em comum é o fato de serem efluentes muito ricos em nutrientes. Ora, esses nutrientes vêm de uma fonte local e deveriam igualmente ser reciclados sem viajar muito, para que seu ciclo se feche com o menor gasto energético possível. É assim que a natureza faz. Enviar para uma estação de tratamento por meio de elevatórias, com gasto energético enorme e permanente, não é uma solução sustentável. E essa é a grande merda dessa nossa história.
Alternativas possíveis
Para não alongar este artigo demais, não vou entrar em aspectos técnicos alternativas de sistemas de tratamento, que são vários já muito testados e com sua eficácia comprovada. Isso fica para outros escritos. O que vale ressaltar é que se tratam sempre de sistemas vivos, com plantas específicas fazendo o trabalho de tratamento e conversão de patógenos em nutrientes e biomassa.
Para nosso caso em questão, eu poderia por exemplo propor pequenos biossistemas integrados (BSI), conforme definidos pel’O Instituto Ambiental (http://www.oia.org.br/definicao-do-sistema/) para atender cada condomínio de 6 ou 8 casas. Ou sistemas maiores para alguns condomínios juntos. Eles seriam implantados nos grandes gramados ao longo das vias, ou em áreas verdes no fundo, a depender do lado da declividade.
Outra alternativa seria a substituição das fossas sépticas por bacias de evapotranspiração (BETs, TEVAPs ou Evapos) individuais para tratar as águas pretas. Os lotes são grandes, há espaços de sobra para sistemas do tipo, que aliás são verdadeiros jardins ferti-irrigados pelo esgoto sobre um sistema feito de pneus velhos e entulhos de obra. (http://www.setelombas.com.br/2010/10/bacia-de-evapotranspiracao-bet/)
Em ambas as propostas, os nutrientes seriam reciclados em forma de biomassa (e alimento orgânico!) ali mesmo, no local, o manejo é simples e seria feito por jardineiros, as escavações e tubulações seriam muitos menores, não teríamos a necessidade de estações elevatórias e muito menos de tubulações sob o lago. Ou seja, um uso dramaticamente menor de recursos naturais e de queima de combustível fóssil. Só para citar algumas vantagens.
Porém, o foco aqui e agora é questionar a lógica do sistema tradicional, que é muito caro, pouco eficaz e nada sustentável, e apresentar uma nova lógica para pensar a questão. Parte disso já foi feito na explicação acima, mas vamos focar nos aspectos econômicos desse nosso estudo de caso.
Vimos que o sistema em implantação custa 14,4 milhões de reais para atender 1830 famílias, a um custo por família de R$ 7.800,00. Se partíssemos para a alternativa de usar BETs, qual seria o custo? Um preço realista para uma unidade é em torno de R$ 3.000,00, mas na construção de várias BETs simultâneas facilmente chegaríamos a valores bem menores em função da escala. Mesmo assim, consideremos o mesmo preço de R$ 3.000,00 a unidade. Poderíamos atender 4800 famílias com os mesmo R$ 14,4 milhões, mais que o dobro. Ou, para atender a esse mesmo público precisaríamos de R$ 5,49 milhões, menos da metade do dinheiro. O restante poderia ser utilizado para monitorar esses sistemas por um bom tempo, e orientar os seus usuários até que uma cultura de tratamento de esgoto in loco estivesse estabelecida. Por que não?
Sei que com uma proposta desse tipo, eu inviabilizaria o atual modelo de negócios da Caesb, pelo menos a parte relacionada ao saneamento. Mas, e se esse modelo for insustentável por se basear tanto em uma visão empresarial antiquada, como em uma visão técnica centralizadora e igualmente antiquada?
E se ficasse nítido que, para implementar a missão estampada em seu site, ela teria que mudar toda a sua lógica? Ora, não tem como você preservar o meio ambiente sem envolver os cidadãos que nele vivem (e torná-los protagonistas) e principalmente sem reciclar os nutrientes presentes no esgoto. Não tem como você ser sustentável baseado em sistemas que gastam muito mais energia do que produzem.
Faço, portanto, um convite às autoridades para uma reflexão. Passemos a efetivamente buscar mais as soluções efetivas dos problemas, mesmo que isso signifique mudar completamente a estrutura montada para solucioná-los. Isso exige coragem, eu sei.
Assim, quero concluir essa história lembrando que fazemos parte de uma cultura insustentável em quase todos seus aspectos, e por isso mesmo temos que pensar e fazer diferente em todas as áreas se quisermos continuar sobrevivendo com qualidade neste planeta. A permacultura oferece um visão, uma ética e muitas técnicas para isso, em vários domínios do conhecimento e áreas de atuação. No caso do saneamento, o que queremos é lembrar que é nossa responsabilidade cuidar das águas que utilizamos. E agir no sentido de preservar sua qualidade e o seu ciclo, vital para toda a vida terrestre. Só assim poderemos garantir que essa história de merda termine bem para todos.
Outros links e referências
http://www.oia.org.br/projeto-sertao-do-carangola/
https://yvypora.wordpress.com/category/agua-e-saneamento/tratamento-de-efluentes/page/2/
http://www.setelombas.com.br/2006/04/sanitario-compostavel/
https://ventomar.wordpress.com/2017/02/23/saneamento-ecologico/
Belo artigo, Sérgio… De novo o interesse não exatamente pelas soluções, mas pelo que se arrecada, pelo reajuste dos custos, pela empreiteira que faz o serviço, etc… O dia em que os custos ambientais forem colocados em qualquer ação humana, ai sim, as soluções lógicas, simples, serão as usadas.
Sim, Su. Estás certíssima. Que esse dia chegue logo.
Que belo artigo!
[…] Artigo do sérgio Pamplona, sítio Nós na Teia sobre saneamento no DF. […]
Caso uma dessas residências tivesse um sistema de tratamento de seu esgoto sendo uma Bet e um jardim filtrante paras as águas cinzas, a CAESB ainda cobraria dobrado pelo fornecimento de água? Parabéns pelo artigo Sérgio.
Salve, Jorge. Claro que cobraria. Vai se apoiar em legislação criada em seu benefício, e vai te obrigar a desativar seus sistemas, muito mais sustentáveis, e conectar na rede deles para levar o seu esgoto para passear lá longe. É uma empresa, tem acionistas, tem que faturar. E isso em si já é um erro, a meu ver.
Belo artigo Sérgio! Sem questionar a insustentabilidade do projeto, fiquei com uma dúvida: porque o sistema consome muito mais água das casas? Penso q vou continuar dando a mesma quantidade de descargas e lavando a roupa da mesma forma!
Oi Mudita. Obrigado.
Não entendi tua dúvida, eu não disse algo assim. Talvez vc tenha interpretado mal o trecho em que falo de duplicar a conta. Isso é porque a Caesb cobra o esgoto duplicando o valor da conta de água (por considerar que o que sai é o mesmo que entra). Mas claro que independente do sistema de tratamento o consumo a principio é o mesmo. Ou não, se as pessoas se ligarem em economizar. 😉
Não sei se te respondi. Diz aí. Abraço.