Vivendo na “matrix”
Atualmente, podemos observar sintomas cada vez mais agudos de uma crise civilizatória. Nas ruas vemos pessoas dirigindo como loucas, atrasadas e/ou estressadas; a manifestação das mais diversas doenças psicosomáticas; carência de relações verdadeiras e a “vida no celular” ou “no face”; falta de ética e de valores; violência e “medo do diferente”; dedicação de tempo livre para assistir programas de televisão que nem consigo encontrar palavras para descrever. Esses e muitos outros comportamentos me lembram da produção cinematográfica Matrix, onde a manipulação e o medo permeiam o enredo.
É fácil perceber que grande parte das pessoas não estão felizes na “matrix”. Mas nem vou enveredar por essa linha nos diversos males e doenças psíquicas, pois daria um capítulo à parte e não é o foco deste texto.
Também é simples perceber que a Terra vive uma situação de desequilíbrio sistêmico, devido a nossa forma de vida. Esse cenário já foi abordado em outras postagens como “Mais amor, menos melindres, por favor”, “Economia Feminina”, “Permacultura e Sociedade”.
Neste artigo queremos focar na tão necessária transição para uma vida em harmonia com nossa alma e, dessa forma, em harmonia com as demais pessoas e com a Terra. Acredito que essa reconexão é possível e urgente. E posso dizer acreditamos, em nome da Comunidade-Escola Nós na Teia, pois essa é a síntese de nossa missão enquanto coletivo: vivermos a transição a partir da Permacultura e apoiar outras pessoas nessa transição. Humildemente queremos contribuir para que mais e mais pessoas possam sair da “matrix”.
A luz no final do túnel
Desenvolvemos a Permacultura como um caminho seguro para a transição por sua atuação sistêmica, que integra todas as áreas essenciais para o bem-viver humano e tem como base a ética do cuidado (com as pessoas e com a Terra). Além de contemplar o estabelecimento de valores para essa cultura de permanência em harmonia com o meio, a Permacultura oferece um caminho muito prático com a metodologia de design de assentamentos humanos sustentáveis.
Em seu aspecto mais conhecido – ecológico, a Permacultura proporciona um profundo sentido de conexão com a Terra e de integração positiva na Teia da Vida.
Há, ainda, uma área talvez menos conhecida da Permacultura a qual denominamos Permacultura e Sociedade (ou Estruturas Invisíveis) por tratar de relações sociais. Aqui no Nós na Teia, defendemos que trabalhar essa área é tão urgente quanto trabalhar a dimensão ecológica. Afinal, conforme abordamos no artigo Permacultura e Sociedade: “Somos seres sociais, que se desenvolvem na vida em sociedade. Na atualidade a busca da individualidade acabou deixando de lado o nosso sentir-se parte, de uma família, de uma tribo, de uma nação, ou do que seja. Defendemos que para o desenvolvimento pleno do ser humano, precisamos aprofundar vínculos no sentido de resgatar a “familiaridade”, o sentir-se parte de um grupo, de ser querido e contribuir positivamente em uma COMUNIDADE. Crescer em um ambiente fraterno de respeito e apoio mútuo dá suporte ao desenvolvimento de indivíduos éticos, cooperativos e emocionalmente saudáveis”.
Em grupo unimos esforços, saberes, habilidades, recursos. Além disso, a vida no coletivo é mais divertida e plena de sentido. Assim, para nós, a luz ao final do túnel fica mais forte e próxima quando seguimos a trilha da Permacultura em um contexto de vida em coletivo. Esse é o caminho que temos adotado no Sítio Nós na Teia, com a proposta de Comunidade-Escola de Permacultura e que estamos compartilhando no Programa Imersão na Teia.
Desafios da transição para uma vida Eco-lógica
Contudo, não é simples seguir esse caminho, pois envolve adotar posturas que tendem a ser contrárias ao fluxo comum da sociedade e que apresentam seus desafios.
O desafio começa com a decisão de sair do padrão ou do que chamamos ser a “zona de conforto”. Como o próprio nome indica a transição que defendemos é um processo, e não simplesmente “chutar o balde”. Acho importante frisar que consideramos que a transição precisa ser uma atitude consciente, bem embasada e com uma caminhada consistente. Considero esse cuidado importante, pois vemos muitos casos de pessoas desiludidas ou em grande stress com a vida na matrix (até aí perfeitamente compreensível!) que optam por se demitir e sair por aí em busca da “ecovila perfeita”. Infelizmente muitas que fazem isso se frustam e acabam ainda mais desiludidas.
Assim, vamos conversar um pouquinho sobre essas expectativas e necessidades para uma transição mais harmônica e consciente.
Para início de conversa, “ecovila perfeita” está mais para conto de fadas do que para realidade. Afinal, quantas pessoas perfeitas você conhece? Ecovilas são feitas por pessoas e quanto mais conscientes essas pessoas estiverem, mais tranquilo será o caminho. Se por outro lado, for um grupo de pessoas desajustadas, em crises pessoais diversas, sem recursos para empreender, a probabilidade do sonho se transformar em pesadelo é grande…
Vamos analisar com cuidado alguns padrões de comportamentos, nessa perspectiva de “chutar o balde”, bastante comuns e tentar passar algumas dicas, que espero possam contribuir de alguma forma para suas reflexões.
1. Não gosto do meu trabalho e da correria da cidade, vou me demitir e morar no campo!
Em nosso contexto, entre amigos que buscam um estilo de vida ecológico, é comum as pessoas sentirem o impulso de largar tudo e ir morar no campo, pois em meio à natureza se sentem mais tranquilas e conectadas com sua própria natureza. Beleza, constatação importante para avançar rumo a um caminho de realização pessoal! Contudo, quantas conhecem realmente a rotina do campo (para além de um final de semana curtindo na cachoeira)? Possuem minimamente saberes e tem alguma PRÁTICA nas diferentes áreas de cuidado que um Sítio demanda? Para além da subsistência, quais opções de trabalho e renda teriam por lá? Analisaram os investimentos e a viabilidade dessa transição?
Em primeiro lugar, sugerimos vivenciar a rotina do campo, com suas delícias e também desafios. A maior parte de nós nasceu e cresceu na cidade e temos muito pouco traquejo para a roça. Os estudos de Permacultura são básicos nessa transição da cidade para o campo. Contudo, mesmo estudantes dedicados poderão perceber que teoria e prática se integram com o tempo e experiência. Assim, o básico precisa ser exercitado e aprofundado. Ao invés de um “mergulho” profundo, sugerimos pequenas “imersões” para pouco a pouco construir as habilidades essenciais. Consideramos nosso pequeno Sítio um grande laboratório nesse sentido. Aqui conseguimos desenvolver nossas habilidades nas diferentes áreas da sustentabilidade: recuperação do solo e produção de alimentos; manejo da água; produção de energia; construção natural etc. E ao mesmo tempo estamos praticamente em meio à cidade – uma grande facilidade para realizar a transição, pois possibilita continuar trabalhando na cidade e vivendo em um meio praticamente rural. Nossa proposta no Programa Imersão na Teia surgiu nessa perspectiva, de proporcionar a outras pessoas essa vivência do dia-a-dia com práticas de sustentabilidade em um Sítio.
Aqui, cabe também a sugestão de foco em mapear e desenvolver habilidades/vocações para ter um foco de caminho viável. Para muitas pessoas definir o que gostariam de fazer profissionalmente é um grande desafio. A dúvida consome muita energia emocional. Assim, considero bastante importante investir nesse mapeamento. Isso pode demandar recursos para realizar cursos entre outros investimentos. Assim, para quem possui uma fonte de renda, pode ser de grande valia aproveitar esse recurso para investir na transição até poder migrar totalmente.
Uma boa dose de criatividade e empreendedorismo também serão muito úteis. De qualquer forma, o mais importante é definir possibilidades de trabalho e renda onde você possa exercer suas vocações onde quer que você esteja, na cidade ou campo.
2. Não preciso de dinheiro, com a Permacultura posso me virar sem!
Também adoraria acreditar nisso. Mas, fazemos parte de uma sociedade capitalista em um país do terceiro mundo. Ou seja, nada favorável… Mesmo um(a) excelente permacultor(a), que possui terra, produz de alimentos, parte de sua energia etc, ainda assim precisará comprar muitas coisas e principalmente se relacionar com a sociedade (ainda pautada no dinheiro). E, acredite, ter um Sítio demanda MUITOS investimentos.
O desejo de evitar o uso do dinheiro pode ser aproveitado na busca por uma vida simples e para reduzir ao máximo a necessidade de dinheiro. Nesta perspectiva a Permacultura certamente oferece excelentes soluções e tecnologias para uma pessoa aprender a suprir, ainda que parcialmente, suas necessidades básicas de alimentação, moradia, água, energia, saúde etc.
3. Eu posso trocar meu trabalho por hospedagem e sair por aí…
Sim, há alguns lugares onde isso é possível. Contudo, reafirmo que de alguma forma há custos e alguém precisará pagar as contas, especialmente no Brasil, onde tudo é mais caro e sem subsídios. Então, para a conta fechar, o trabalho voluntário precisa realmente ser muito útil e estar equilibrando a balança financeira do local. Senão a pessoa estará apenas buscando por alguém que a sustente e isso não será sustentável. No mundo das comunidades esse é um padrão já conhecido – o de pessoas que querem sair de casa, mas buscam “na comunidade” uma “mãe” ou “pai” que os adote.
Não estou afirmando que todas as pessoas que focam em trocas de trabalho voluntário têm esse perfil. Acredito na importância das redes de trabalho voluntário no sentido de estágios, experiências. Podem ser muito úteis como estratégias temporárias, quando se está em um caminho definido na busca por aprimoraramentos ou mesmo para confirmar possibilidades de atuação e testar vocação. Nesse sentido, é certamente muito útil visitar lugares, conhecer pessoas que trilharam caminhos na direção que se almeja e aprender com seus acertos e principalmente com seus erros.
O que acho delicado é a crença de que se pode viver assim ou que o dinheiro é algo ruim. Há alguns anos busco desenvolver sistemas monetários complementares como moedas sociais, feiras de trocas etc. Essas tecnologias certamente ajudam e são muito uteis, mas são COMPLEMENTARES. Ter alguma renda possibilita transitar muito mais facilmente por lugares que vivem a transição, sem trazer mais um desafio financeiro para o grupo do local. Pelo contrário, contribuindo para que o fortalecimento seja mútuo. É difícil e chato ter que continuar trabalhando na “matrix”? Sim, esse é um grande desafio para todos. Pessoas que conseguem aplicar sua criatividade e empreendedorismo para gerar renda numa perspectiva de trabalhos significativos socialmente, geram benefícios não apenas para si, mas para todas as pessoas na transição.
Bem, está até parecendo que não estou ajudando a fomentar a transição, não é mesmo? Muito pelo contrário, considero que nossa cultura precisa de uma transição radical. Mas, precisamos de uma transição madura, efetiva, saudável. E por já ter alguma experiência trabalhando nesse caminho acho importante compartilhar esses alertas e dicas. Então, para finalizar gostaria de deixar mais duas sugestões que considero ser pilares para a transição. Trabalhe o equilíbrio das emoções e a comunicação. O sucesso na jornada dependerá, em grande parte, de processo sincero de aperfeiçoamento pessoal e da pessoa saber estabelecer relações empáticas, equilibradas e cooperativas com os demais. Infelizmente são habilidades e competências pouco presentes na sociedade atual e por isso ausentes na maior parte das escolas e mesmo formação familiar.
Esta evolução esta diretamente relacionada à busca por parceiros de caminhada, ou seja, estar entre pessoas que se compreendem e com propósitos comuns. Assim, se estabelecem redes de apoio para co-evolução em muitos aspectos, inclusive emocionalmente frente aos obstáculos da transição.
Independentemente do caminho escolhido recomendamos consciência, propósitos claros, análise realista de possibilidades, desenvolvimento de habilidades, persistência, redes de apoio, habilidades de comunicação e empreendedorismo. Mas acima de tudo muita amorosidade, cooperação e alegria, pois se não for divertido não será sustentável!
Caso queira conhecer um pouco mais sobre o nosso trabalho na Comunidade-escola de Permacultura e formação para pessoas em transição veja nosso programa Imersão na Teia.