Vivemos em um momento histórico no qual estamos colocando em risco a sustentabilidade planetária. Muitas espécies já foram extintas e a sobrevivência da nossa própria espécie é incerta. No cerne das causas desses problemas está o consumismo desenfreado em uma economia distorcida.
Eduardo Galeano, em seu texto “O império do Consumo” nos alerta sobre o assunto e instiga a novos olhares e posturas.
A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados. (…) Os buracos no peito são preenchidos enchendo-os de coisas, ou sonhando com fazer isso. (…) A cultura do consumo, cultura do efêmero, condena tudo à descartabilidade midiática. Tudo muda no ritmo vertiginoso da moda, colocada à serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje, quando o único que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa na velocidade da luz: ontem estava lá, hoje está aqui, amanhã quem sabe onde, e todo trabalhador é um desempregado em potencial. (…)Não existe natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.
Nessa cultura do consumo, utilizamos muito mais recursos do que o planeta Terra é capaz de produzir para renovar seus ciclos. Tudo vêm da Terra. Portanto, se estamos utilizando mais do que nossa cota, obviamente estamos em um cenário insustentável que tende a exaustão e colapso. Em uma linguagem financeira podemos dizer que estamos no vermelho, acumulando dívidas no cartão de crédito. Contas que se avolumam como uma “bola de neve”.
Se as tendências atuais de consumo continuarem, até 2050 — quando a população deverá chegar a nove bilhões — serão necessários três planetas terra. Somando-se a essas pressões, está a rápida aceleração da urbanização.
Embora as cidades ocupem apenas 3% da superfície terrestre do planeta, consomem 75% dos recursos naturais, produzem 50% dos resíduos mundiais e são responsáveis por 60 a 80% das emissões dos gases de efeito estufa. A urbanização só vai continuar a distorcer as taxas desproporcionais de consumo, aponta o PNUMA (https://nacoesunidas.org/ate-2050-serao-necessarios-tres-planetas-para-suprir-necessidades-da-populacao-mundial-alerta-onu/).
Mas não temos três planetas! Então, quem pagará por isso? Há algumas décadas talvez pudéssemos dizer que seriam as próximas gerações. Contudo, com a agudização do cenário, vivemos em uma época onde nós mesmos já estamos sentindo as consequências desastrosas dos atos de nossa sociedade em uma conjuntura de crises: ambiental, energética, econômica, política e essencialmente ética!
Nossos governantes tendem a buscar soluções priorizando um raciocínio econômico. E nesta perspectiva a forma de lidar com crises costuma ser aumentar o consumo; buscar novos mercados para “reaquecer a economia”. Obviamente essa lógica convencional não nos tirará desse problema. Muito pelo contrário, apenas deixará o ciclo vicioso mais intenso.
Grande parte das pessoas sabe desses problemas, mas não vislumbra alternativa. Frente a questões tão complexas e amplas a tendência costuma ser a acomodação e a adoção de uma postura impotente justificada em afirmações do tipo: “é assim mesmo e não sou eu que vou conseguir mudar”.
É urgente uma mudança de postura. Em primeiro lugar precisamos acordar para o fato de que a economia é um subsistema do ambiente e não o oposto. A cultura da população de uma determinada biorregião é, ou deveria ser, fortemente marcada pelos elementos naturais disponíveis à vida naquele espaço, ditando as possibilidades e os limites.
Assim, o primeiro passo é honrarmos a Terra, como nossa “grande mãe”, em sua essência nutridora de toda a vida no planeta reconhecida pelos povos andinos como Pacha Mama. Em conexão com essa abordagem consideramos ainda que a energia feminina precisa ser resgatada nas relações econômicas. A essência de cuidado, a habilidade de prover, de acalentar, de estabelecer relações profundas, compassivas e solidárias, entre outras qualidades, podem nos tirar do estado de escassez e crise no qual nos encontramos enquanto sociedade. Concordamos com Paulo Silva, quando diz que:
Dentre os muitos movimentos populares que atualmente trabalham pela mudança social, o movimento ecológico e o movimento feminista são os que defendem as mais profundas transformações de valores.
(…) No seu nível mais profundo, a consciência feminista baseia-se no conhecimento existencial que as mulheres têm do fato de que todas as formas de vida são interligadas, de que a nossa existência está sempre inserida nos processos cíclicos da natureza. Por isso, a consciência feminista tem por foco a busca da satisfação nos relacionamentos, e não na acumulação de bens materiais (SILVA, 2009, p. 54).
A energia feminina não é uma qualidade apenas das mulheres. Contudo, consideramos que nas mulheres as qualidades estão mais presentes. Assim, a mulher pode atuar como eixo de transformação para levar relações solidárias e uma economia saudável para seu lar, seus afetos, sua comunidade.
Para sairmos do paradigma de escassez destrutiva também é preciso romper com o mito de que “é assim mesmo” e com a tendência de fugir do tema dinheiro e economia. Lynn Twist em seu livro The Soul of Money aborda de forma inspiradora a questão da pobreza ou escassez a partir de aspectos subjetivos e defende que grande parte dos problemas que enfrentamos enquanto sociedade estão relacionados com a relação distorcida e difícil que temos com o dinheiro.
O dinheiro é, ou deveria ser, uma tecnologia, historicamente desenvolvida para dinamizar a permuta e fluxo de produtos e serviços; para valorar(medir valor) coisas e assim facilitar comparações e trocas ou mesmo para permitir o acúmulo no caso da necessidade de um investimento maior (ex. comprar uma casa). Essas funções podem ter efeitos positivos ou desastrosos, dependendo da forma como a sociedade se apropria e usa a tecnologia. Com o dinheiro a humanidade extrapolou sua função de tecnologia meio e ele se tornou um fim. Passou a ser ele mesmo um “produto”, que ganhou um valor e poder acima da própria vida e ética. Como pudemos chegar ao nível de comprar e vender vidas (sejam elas humanas ou de outros seres)? Passamos de todos os limites e chegamos ao ponto de que a invenção dominou o próprio inventor. Infelizmente é fácil citarmos exemplos dessa desvirtuação no uso do dinheiro para fins de dominação, opressão, exclusão.
Enfim, o dinheiro não tem alma, mas atribuímos a ele uma a partir da ética na forma como ganhamos, gastamos, investimos, poupamos. E qual a “alma” em relação ao dinheiro percebido no inconsciente coletivo atual? Com certeza não é das mais bonitas. Sabemos disso pela dificuldade que quase todas as pessoas possuem de lidar com esse tema. Falar de dinheiro acessa questões profundas em cada pessoa. Perguntar o salário de alguém é tido como uma atitude desconfortável, deselegante. Ou na cisão exposta no dito popular “amigos, amigos, negócios à parte”. Em nossa sociedade o assunto dinheiro é um grande tabu. Essa fragilidade nos indica que há uma ferida profunda na alma das pessoas, com melindres diversos relacionados ao dinheiro, que precisa ser tratada.
O problema não é o dinheiro e sim a forma como lidamos com ele. Podemos sim resgatar o dinheiro enquanto tecnologia útil para o progresso humano, como uma ferramenta para fluir a abundância, servirmos uns aos outros, apoiar nossas comunidades e preservar nosso meio ambiente.
Esse é o desafio ao qual eu e um grupo de amigas estamos nos propondo no Projeto Feira Fértil: Economia Feminina.
O início da jornada: diálogos sobre “A ferida do dinheiro”
Em 2016, com o apoio de amigas de um grupo onde tecemos juntas ciclos de abundância, decidi me lançar ao desafio de problematizar e fomentar a reflexão sobre o que denominamos Economia Feminina. Preparamos três encontros abertos para mulheres. Contudo, por ser um tema árido preferimos iniciar modestamente com um grupo pequeno de amigas. Em três noites (01/08/2016; 15/08/2016 e 29/08/2016), com um número de participantes entre 15-20 mulheres, trabalhamos os seguintes temas:
- Paradigma da Escassez e da Abundância
- A História do dinheiro
- O jogo do dinheiro
- Paradigma da abundância e o feminino
- Alternativas para manifestar a abundância
Foram noites inspiradoras. Ao mesmo tempo nossa equipe de organização avaliou que o tema realmente trabalha aspectos profundos e que foi importante trabalhar o tema com cuidado e cautela. Consideramos acertada a opção de iniciar em um grupo mais íntimo onde já havia uma relação de confiança.
Já mais confiante decidi avançar na iniciativa e ampliar o trabalho incluindo uma Feira de Trocas com o uso de Moeda Social. Lançar uma moeda social era um sonho antigo que só consegui realizar com o apoio dessa rede de amigas, sou muito grata por ter conhecido e estar tecendo junto com cada uma delas!
Com a moeda social vislumbro a possibilidade de um desenvolvimento bem mais amplo, integrando os seguintes objetivos:
- Compreensão da tecnologia dinheiro a partir da experiência prática;
- Promover educação financeira e cuidar da “ferida do dinheiro”;
- Empoderar as mulheres como protagonistas sociais e empreendedoras no fortalecimento da economia do lar e da comunidade;
- Resgatar qualidades femininas e vínculos solidários nas relações econômicas;
- Reaproveitamento e reuso de recursos, na perspectiva de consumo consciente.
- Fomentar um relação continuada de trocas por meio do uso de um Sistema de Trocas Online na plataforma Community Exchange.
Os encontros tiveram um sucesso maior do que esperávamos, de forma que já no segundo encontro recebemos feedback do grupo sobre a necessidade de buscarmos um local maior para contemplar o grupo, que variava entre 20-30 mulheres, e principalmente oferecer um local específico para cuidar das crianças que acompanhavam as mães.
Em contraste, o uso do Sistema Virtual não teve o uso esperado. No momento presencial buscamos mostrar a ferramenta e estimular o acesso pois considerávamos que a ferramenta poderia trazer diversos benefícios por possibilitar trocas, sem a limitação de tempo e espaço das feiras presenciais. Além disso, no sistema as mulheres poderiam registrar e divulgar seus talentos, bem como produtos e serviços que desejavam adquirir. Ou seja, por meio de diferentes ferramentas o sistema permitiria fluxos mais dinâmicos e um excelente registro das transações e comportamentos do grupo.
Contudo, foram poucas as mulheres que continuavam acessando o sistema depois do momento presencial. Naquele momento estávamos trabalhando com a ideia de continuidade da moeda. Assim, todas as transações (compras e vendas) realizadas na Feira com moeda social precisavam ser lançadas no sistema online para mantermos um balanço atualizado das contas de cada participante. Essa necessidade de sincronização de dados me trouxe uma sobrecarga, enquanto administradora do sistema, devido ao fato de que a maioria das mulheres demonstrou dificuldades para acessar o sistema e assim assumi a tarefa de lançar as transações que ocorriam na feira. A ideia era aos poucos trabalhar a familiarização das participantes com a plataforma e sua autonomia em gerir suas contas e transações no sistema. Entretanto rapidamente desisti desse caminho pelos seguintes problemas:
- Sobrecarga de trabalho
- Inconsistência de dados: durante a feira era comum as mulheres esquecerem de registrar alguma venda e isso acarretava inconsistência nos saldos delas e das compradoras no sistema
- Dificuldade de avançar na inclusão digital, pois ficou difícil incluir oficinas de uso do sistema nos encontros presenciais. Além do pouco tempo, muitas mulheres não participavam de todas as atividades propostas. Algumas vinham apenas no horário da Feira (perdendo a parte do trabalho educativo), outras saiam antes do final da feira.
Consolidando a Feira Fértil e moeda broto em 2017
Após um período de férias, em março de 2017 retomamos as feiras já com proposta renovada. Decidimos que as feiras ocorreriam no CASFA (Centro de Apoio Social Francisco de Assis), um espaço maior e dedicado ao trabalho social, no Paranoá, região periférica de Brasília. Sentíamos que lá nosso trabalho poderia ser ainda mais útil socialmente e florescer trazendo abundância para mulheres da comunidade. Esse fortalecimento veio também pelo fato de termos trabalhando lá uma amiga querida, Maria Cleudes, com larga experiência de Economia Solidária e que já estava conosco neste projeto desde 2016.
Além da mudança de local decidimos desvincular a conta do sistema online da Feira presencial. Desta forma estruturamos o Ecobanco para criar a moeda, com lastro em produtos, aos moldes do que aprendi em Oficina com Heloisa Primavera e na experiência do Mercado de Trocas Solidárias (MTS) no Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre, onde foi utilizada a Moeda Social TXAI. O grupo de trabalho do TXAI forneceu um material educativo bastante detalhado para esclarecer aspectos essenciais da economia solidária. Trago aqui alguns conceitos básicos lá apresentados:
- ECONOMIA SOLIDÁRIA é uma maneira de organizar a economia fundada na valorização do trabalho, do saber e da criatividade humana, assim como também os valores de cooperação, reciprocidade e partilha. Hoje sabemos que a Economia tradicional foi desenvolvida no interior do paradigma da escassez, isto é, partindo do falso pressuposto de que era sempre necessário organizar a distribuição de recursos escassos para as necessidades sempre crescentes. O resultado foi a concentração da riqueza em poucas mãos e a exclusão, gradual mas contínua, das grandes maiorias do jogo do mercado…
- MOEDA SOCIAL é o instrumento que substitui a moeda oficial em grupos humanos que atuam como produtores e consumidores em circuito fechado, eliminando assim o obstáculo da escassez do dinheiro. À diferença da oficial, a moeda social não tem juros, nem oferece vantagem ao ser acumulada, servindo à produção e não à especulação. Esta prática que não requer dinheiro foi denominada Troca Solidária porque coloca em contato a produtores e consumidores, como se a troca fosse realizada por muitas pessoas. Uma diferença importante entre a moeda social e o dinheiro oficial é que qualquer pessoa pode ter acesso a ela, na medida que pode produzir algo e necessite consumir algo de um valor equivalente, que poderá intercambiar com qualquer membro do grupo. A rigor, tecnicamente, não se trata de uma moeda, porque sua aceitação não é obrigatória, como o é a do dinheiro oficial emitido pelos Bancos Centrais. É importante compreender esse aspecto, porque implica que se trata de uma prática absolutamente legal. Sua aceitação é totalmente voluntária. Mais ainda, é parte de uma atitude de compromisso com outra economia que leva em consideração a construção de relações sociais mais justas e eqüitativas.
- TROCAS SOLIDÁRIAS é o nome que se dá em vários países da América Latina às transações entre produtores e consumidores que não usam dinheiro oficial e, quando necessário, utilizam uma moeda social. Embora se trate de transações entre muitas pessoas, a palavra troca foi conservada para mostrar o sentido de reciprocidade quando alguém oferece algo para outro, sem envolver o dinheiro. Agregou-se, logo, o adjetivo solidário porque muitas dessas iniciativas se desenvolveram e prosperaram no interior do nascente movimento da Economia Solidária.
- ECOBANCO é o mecanismo que permite criar uma moeda alternativa. Trata-se do mecanismo gerador do efeito dinheiro, sem ganhos para terceiros. Em vez de banqueiros, que obtém grandes benefícios e acumulam dinheiro, intervém aqui um grupo promotor ou equipe operativa responsável por uma gestão transparente e eqüitativa.
Ao longo dos anos desenvolvi certa experiência de facilitar Feiras de Trocas educativas com o uso de Moeda Sociais e Ecobanco com grupos diversos (Educação Gaia Brasília; Grupos dos cursos de Permacultura etc). Para estes momentos educativos a moeda é criada e encerrada no mesmo dia. Ou seja, no início da feira cada participante leva produtos ao Ecobanco para deixar como lastro, na quantidade fixa estipulada, e retira o valor em Moeda Social. Ao final da Feira os participantes que ainda possuem moeda social em mãos retornam ao Ecobanco e destrocam a moeda novamente por produtos, do lastro. Assim, zera-se a moeda.
Na proposta da Feira Fértil adotamos uma variação. Não zeramos a moeda. A diferença é que as participantes têm a opção de destrocar moeda ao final da feira ou manter saldo para a feira seguinte. Esta forma de funcionamento está se mostrando bastante interessante pois contempla melhor as necessidades das mulheres (evitando levar produtos desnecessários do lastro) e também ajuda na fidelização da participação das mulheres.
Já a plataforma do sistema virtual está praticamente sem uso. Nossa avaliação é que para que seu uso se estabeleça será necessário um empenho de divulgação e criação de cartilhas impressas. Também pensamos na possibilidade de ampliar público integrando também homens. Sentimos cada vez mais o chamado por esse trabalho com público misto.
Com a mudança de espaço sentimos inicialmente um retrocesso no número de participantes. Mas na continuidade mais mulheres apareceram e a comunidade do Paranoá foi se integrando.
Para finalizar este relato parcial da experiência gostaria de deixar registrado o sentimento de gratidão a todas a telarinas e mulheres maravilhosas que estão apoiando esse movimento. A gratidão ecoa em diversos depoimentos em nossa roda de partilhas e nos instiga e continuar encontrando essas lindas mulheres para semearmos juntas BROTOS em uma terra cada vez mais FÉRTIL.
Referências:
- GALEANO, Eduardo. O império do Consumo. http://www.cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/Eduardo-Galeano-e-o-imperio-do-consumo/2/24179
PRIMAVERA, HELOISA. Cartilha TXAI para preparar uma feira de trocas com moeda social. Disponível online (2005): https://redlases.files.wordpress.com/2008/02/pt2005_cartilha_moedasocial_hp.pdf.
SILVA, Paulo Roberto da. Consciência e abundância. Niterói, 2009, 192p.
TWIST, Lynne. The soul of Money. Nova Iorque, 2003, 259p.